Não há regras para boas fotos, apenas há boas fotos
(Ansel Adams)

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

UMA FOTO, UMA LEITURA

Foto: António Tedim
Texto: Rui Santos (www.cognitare.blogspot.com)





                                                                    A RUA



Era noite. Não havia vivalma a passear naquela rua, vestida de paralelos molhados pela chuva que presenteou o dia que passou. Os paralelepípedos de pedra antiga preenchiam aquele espaço vazio de tudo o que seria normal, carros, motas, caixotes do lixo, nada, não há nada a não ser o chão. Era uma estrada onde passou e passa muita gente. Os paralelos, ainda que ordenados e uniformes, estão gastos. Apesar do uso notava-se que foram cuidadosa e meticulosamente colocados um a um, pedra por pedra, com brio e orgulho de quem gosta do que faz. Devem ter uns bons anos, quem sabe se não terão nove séculos. Nesta estrada devem ter passado cavaleiros de arma em riste, as primeiras carruagens e charretes, quem sabe se um Ford T preto não pisou este chão, tão cuidadosa e sofregamente construído, antes dos veículos atuais.


Olhando o chão deste prisma tenho um súbito respeito por ele como nunca me tinha passado pela cabeça. O que já não lhe passou por cima e, mesmo assim, mantém-se firme na sua missão de servir as pessoas que dele precisam. Os riscos que separam cada paralelo são precisos, julgo mesmo que vejo um ângulo de noventa graus em cada cruzamento das linhas. Na altura os homens que fizeram este caminho deviam ter previsto que era preciso cuidar bem do serviço, de modo a que durasse o tempo suficiente para as necessidades das gerações futuras. Esta estrada parece-me única. Está molhada e gasta e, no entanto, está ordenada, bem formada, pronta para ser utilizada e não lhe vislumbro um fim próximo.


Estou sozinho. Devia ir para casa descansar, mas não consigo sair desta estrada. Parece que estou preso a ela. Tento saltar para o passeio, mas não consigo. Acho que estou condenado a percorrê-la. Tento ligar o telemóvel, mas está sem rede. Olho para a frente e só vejo a continuação de uma amontoado ordenado e simétrico de pedras gastas e brilhantes. Choveu durante o dia. Tudo levaria a crer que entrasse em choque ou cair em desespero, mas há uma calma que se apoderou sobre mim desde que estou nesta estrada, construída há quase nove séculos, por homens, onde já passou por cima dela quase de tudo e, ainda assim, ela está bela, mesmo com o negrume que se apoderou sobre ela desde o anoitecer, a luz dos candeeiros reflete no molhado que as protege e alumia o caminho. É um caminho para a frente, não consigo sequer virar-me. Começo lentamente a caminhar em frente...


Triiiimmmmm


Tocou o despertador. São horas de me levantar e ir trabalhar. Estou estranho, só me vem à cabeça que hoje deveria trabalhar para colocar um paralelo, com cuidado, com mestria e brio, um paralelo novo que pudesse ficar gasto e molhado.






(Uma foto, Uma leitura" é o resultado do desafio que lancei ao Rui Santos de escrever sobre algumas das minhas fotos.Neste post fui eu que peguei num texto do Rui e "colei-lhe" uma foto) 

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