Não há regras para boas fotos, apenas há boas fotos
(Ansel Adams)

quarta-feira, 11 de julho de 2012

UMA FOTO, UMA LEITURA








A JANELA






Olho e sinto-te como outrora. Imagino-te a subires estas escadas debaixo de um guarda-chuva velho abrigando-te destas nuvens que choram incessantemente as lágrimas grossas e espessas que se colam solidariamente a esta janela, em forma de gotas, perdidas, a deambularem entre os caminhos indefinidos do vazio frio e gélido desta superfície húmida. Olho para cada uma delas sem conseguir encontrar o destino que procuram, ora escorregam pela direita, ora se perdem pela esquerda. Há apenas um elemento comum, a falta de rumo, nesta existência que terminará em breve quando embaterem no fundo do vidro, e aí, juntas, formarão um único e comum pedaço de água. Olho e sinto-te com saudade, o aperto no coração provoca o início de uma lágrima salgada que também ela nascerá nestes olhos cansados e encontrará poiso nas rugas da minha cara e escorrerá perdida à procura do nada.



Recordo-te a subires estas escadas escuras e gastas, com esforço e cuidado para não caíres, com especial atenção nestes dias de chuva, davas passos pequenos, e eu, olhava-te desta janela de peito apertado de preocupação. As gotas continuam a valsar sem rumo, sem consciência de que estão a cair, de que em breve perderão a sua liberdade. Umas descem precipitadamente como se não houvesse amanhã, outras vagueiam a demorar o seu destino e, uma delas desce na vertical, na rebeldia de todas as outras, fá-lo lentamente, como se controlasse a velocidade da sua queda, como se controlasse o seu destino, como se controlasse o meu olhar fixando-o na sua viagem, ditando também ela o rumo da lágrima que nasceu salgada e que desce em uníssono, traçando a sua passagem com um ardume por cada poro desta pele fina, escura e gasta cheia de caminhos perdidos.


Vivo-te no limbo destas lembranças que se misturam na realidade quimérica que me consola neste apartamento escuro, vazio e sem vida. Posso abdicar de tudo que resta neste cúbiculo, menos desta janela, menos desta montra, onde tu estás, lá em baixo de baixo de um guarda-chuva, a subires paulatinamente as escadas com a saca das compras, a parares para recuperares fôlego, a olhares para o cimo da escadaria, a medires quanto falta, e eu, nesta janela, ficava na imponência de quem não pode ajudar, a ver-te, com a força que só as mulheres têm a venceres mais uma batalha.


A gota de água que caiu do céu, num choro de uma nuvem, permanece na sua velocidade cruzeiro a percorrer a janela, numa carícia deliciosamente demorada e suave, a acompanhar a lágrima que escorre na minha face cada vez mais ardente, cada vez mais saudosa. Olho para as escadas e continuo a sentir-te, cada vez mais intensamente, nesta dor dilacerante fecho os olhos com força, abro-os novamente, a gota está a chegar ao seu destino, mas no instante final para...permanece uns segundos parada e cai ao mesmo tempo que a lágrima que marcou a minha cara num ardume como outrora o poeta disse, "amor é fogo que arde sem se ver".

Foto: António Tedim
Texto: Rui Santos (www.cognitare.blogspot.com)