Não há regras para boas fotos, apenas há boas fotos
(Ansel Adams)

segunda-feira, 22 de abril de 2013

UMA FOTO, UMA LEITURA



                                       Hoje e Sempre, O Passado

As águas paradas desta lagoa que ladeiam as frescas terras húmidas polvilhadas com um musgo verde vivo, iniciam o caminho para o bosque alumiado pela luz forte do Sol. Nessa águas calmas, reluz o reflexo da imagem dos caminhos da vida que lhes penetra e que as alimenta. A paisagem surge-nos imbuída de troncos fortes, encorpados e velhos que contornam as águas cintilantes como muralhas protetoras. Em cada tronco surgem ramos de vários tamanhos, neles brotam ramalhetes, numa transformação constante, onde, à medida que o tempo passa, os ramos se tornam também eles troncos e os ramalhetes dão origem a ramos, tornando-se imperceptível quando começou um e acabou outro.

Hoje, há um ramo forte e vigoroso que me encara no espelho aguado que me rodeia, em mim brotou um ramalhete que cresce a cada dia, um ramalhete que fortalece a sua fragilidade numa dependência viciante. Hoje, sou um ramo quando olho nos teus olhos cansados, nessa dança contra o sono, pestanejando lentamente as pálpebras até te deixares adormecer. Nesse momento, nesse ínfimo hiato de tempo,  quando te aconchego nos meus braços e te olho, como só um ramo consegue olhar, lembrando-me que outrora, também eu fui um ramalhete que lutou contra o sono, que se deixou vencer, adormecendo na segurança do no colo do seu ramo. É nessa nostalgia que, entre o limbo do sono e da realidade, num ímpeto, numa incapacidade de raciocinar, levado pela dor ardente da saudade, dou um salto desenfreado para aquelas águas paradas no tempo, agitando-as, fazendo-as sentir o batimento incontrolável do meu coração, provocando-lhes um movimento ondular que revolta a lagoa, que a reaviva, que transborda as fronteiras da muralha, permitindo-me viajar submerso naquele líquido frígido, cada vez mais gélido à medida que chego mais perto das profundezas da saudade, lutando contra o tempo na procura do tronco que me brotou e que se encontra debaixo daquela linha. Nado, incessantemente, à procura do ontem, à procura do abraço e, tal como te faço a ti, à procura do meu cafuné para adormecer na calma dos anjos, na luta contra o sono, nos braços de quem amo.

O regresso à superfície foi lento e longo, mas tranquilo. Nadei até ao meu tronco, comecei a subi-lo com o corpo a escorrer água, molhando-o com a mesma suavidade com que me ia secando. Chegado ao meu ramo, olhei em volta, observei a muralha que nos protegia, abracei-o com força e, numa simbiose perfeita, senti o meu corpo a ser absorvido numa metamorfose natural, calma e tranquilizante. Era de novo um ramo, um ramo de outro ramo, de outros ramos, um ramo de um tronco que outrora foi ramo. Voltaste a brotar e voltei a ver-te crescer. Um pequeno ramalhete fino, frágil e verde que, a cada dia, se vai transformando. Olho-te com orgulho, vejo-te a crescer, a ganhar estrutura, a ganhar força, a caminhar pela primeira vez sozinha. Na tranquilidade do ar que envolve a lagoa, começo a lutar contra o sono, foi um dia intenso. Agora quero apenas olhar para ti, ver-te crescer e sentir o cafuné húmido das águas da lagoa.

Foto - António Tedim
Texto - Rui Santos (www.cognitare.blogspot.com)

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

UMA FOTO, UMA LEITURA






                                             Lado a lado

As águas calmas da lagoa ondulavam-se num movimento harmonioso acariciando levemente o barco, cândido e imaculado, construído com madeiras novas, pintadas de um branco singelo, mas ao mesmo tempo denso e compacto. Sentamo-nos cada um na sua ponta, deixamo-nos embalar sob o sol jovem, forte e quente, com os olhos fixos um no outro e o sorriso a preencher-nos a cara jovem e apaixonada.

Sem perdermos tempo agarramos nos remos com as duas mãos e, em uníssono, remamos com o fulgor de quem sentia que o mundo podia acabar no minuto seguinte, sempre de olhos fixos um no outro, sempre em uníssono, sempre com um sorriso que nos preenchia, que nos dava forças para continuar. Fizemo-lo durante dias, semanas, meses, anos, fizemo-lo naquele barco que começava a ficar com a tinta gasta e baça, com a madeira a começar a abrir pequenas fendas, sob o sol a envelhecer e a perder calor, com os olhares a perderem-se no ruído que nos rodeava, com as braçadas a perderem lentamente a sintonia, mas a remarmos, ainda que cada vez com menos fulgor.

O barco continuava o seu percurso, em boa verdade, porque tu remavas mais do que eu, em boa verdade eu percebi isso e não fiz nada para alterar esse estado, nem sempre estive atento para ver se precisavas que te substituísse, já para não falar de remarmos juntos, com a mesma vontade, com o mesmo esforço, de olhos colados um no outro, a brilharem do mesmo entusiasmo, ou simplesmente a remarmos juntos, ainda que fosse de forma descoordenada, mas ao menos remávamos juntos, ou não foi por isso que entramos no barco? Vi-te várias vezes a remar pelos dois, e no conforto da inércia olhava para os teus olhos penetrantes e doces como a cor de mel que os preenchia, para a tua pele morena, para o teu cabelo forte e negro, para o teu sorriso sensual, olhava e confiava que não fazia mal que remasses pelos dois, porque no meu íntimo eu havia de compensar depois...só agora percebo que não podemos compensar o passado.

Na lagoa, de brisa fresca proveniente do arvoredo verdejante que a ladeava, via os barcos como o nosso e nunca me dei ao trabalho de os olhar com atenção, de os analisar e ver neles o nosso espelho. Uns passavam a grande velocidade, com os olhares imbuídos numa pele terna e vivida permaneciam fixos um no outro e o sorriso ainda lhes preenchia a cara, como nós, outrora; outros deambulavam num ritmo incerto e sem direção; outros encontravam-se à deriva, com os remos inertes nas presilhas dos barcos, com musgo a colorir a madeira rasgada pelo tempo. Sempre pensei que, embora o meu desleixo, haveríamos de remar juntos até à eternidade, imaginei que quando não tivéssemos forças, neste caso quando tu deixasses de remar, iríamos estacionar o barco debaixo de um árvore e ali ficaríamos, de olhos fixos um no outro, de sorriso aberto, a perder-nos no tempo da paixão que nos juntou e, lado a lado acompanhávamos o sol a pôr-se.

Hoje, quando acordei, o barco apenas se mexia pela ondulação das águas calmas da lagoa, provocadas pelos barcos que passavam, procurei-te e não te vi, olhei em redor e não te encontrei, tentei vislumbrar onde estarias, mas apenas conseguia ver os barcos a passarem, com casais, de olhos fixos um no outro e de sorriso largo. Levantei-me e olhei para os remos, peguei neles outra vez, como no início e, de pé, com um remo apenas, remei, ora para o lado direito, ora para o lado esquerdo, tentei dar a volta para trás, para te chamar e dizer que lamento, que agora percebo que o barco só anda com duas pessoas a remar, mas a lagoa só tinha um sentido.

Foto - António Tedim
Texto - Rui Santos ( www.cognitare.blogspot.com )

sábado, 16 de fevereiro de 2013

UMA FOTO, UMA LEITURA

 
 
Nevoeiro
 
O meu corpo funde-se nas rugosidades que arquitetam os traços históricos desta cidade misteriosa e invicta que acorda para mais um dia. O meu corpo, denso e rarefeito, deambula neste matinal, passeio-me por cada espaço, por cada aresta desta urbe, desde o chão pincelado pelo brilho orvalhado da neblina – ora de alcatrão, calçada ou mesmo de paralelos gastos e escuros – até que termino o vagueio diário, e quando finalmente consigo ficar com o meu corpo totalmente espalhado como um cobertor que se instalou no ar, planando um ambiente escuro e ambíguo, levanto-me ao mesmo ritmo da vida da cidade, ao mesmo ritmo destas pessoas que fazem deste Porto tão característico, destas pessoas que encaram todos os dias com a mesma esperança, com a mesma certeza que por detrás de mim, que atrás deste cinzento escuro, chegará um novo dia, um dia que poderá ser melhor do que o anterior...
 
Os dias seguem-se numa rotina instalada; desde o cheiro exalado pelas padarias do pão acabado de cozer, cheiro quente que conforta a brisa matinal; o perfume da mistura das flores frescas que se acomodam nas bancas das floristas avivando o ar denso e rarefeito que emano; o “ardina” que coloca os jornais nas portas das tabacarias, presos por um fio que os aperta e pelas notícias que os sufoca; os primeiros carros a passar com as luzes ligadas a trespassar o meu corpo denso e rarefeito. Tudo se afigura igual ao dia que passou, tudo promete ser uma repetição do que já foi, mas tudo pode ser diferente.
 
O meu corpo que se espelhou pela cidade vai começar a levantar-se e, dentro em breve subirei, mas não deixarei de estar presente na imagem que caracteriza esta cidade, estarei bem lá no alto a ver mais um dia passar, um dia que pode ser igual ao anterior ou um dia que pode ser o da mudança.
 
Algures neste corpo que se espalhou pela cidade sinto uma prurido, um afagar, um esgravatar, não consigo decifrar onde, apenas o sinto, apenas sei que é distinto do habitual, apenas sei que o dia já não é igual aos outros. Como um cão que roda em si mesmo tentando ferrar a sua cauda, remexo-me, inquieto, inseguro, à procura desta sensibilidade que não sei o que é e que se agudiza, busco-a cada vez mais agitado, cada vez mais com uma ansiedade curiosa. A cada segundo que passa o escarafunchar torna-se mais intenso, mais incerto e desacertado, mas mais profundo. O meu corpo deixa-se pairar na cidade mais tempo que o habitual à procura da razão daquela novidade que está já a tornar este dia especial.
 
Depois de muito me revolver, e à medida do aumento daquela sensação, descubro aquelas mãos pequenas e rechonchudas a investigar o meu corpo denso e rarefeito. Primeiro vejo os seus dedos pequenos, depois as mãos rechonchudas e, num desatino infantil, dá-se um esbracejar desconcertante a furar o meu corpo, deixando um buraco grande que se dissolve no ar. Aproximo o meu olhar intenso e fixo-o naquela criança de olhos azuis celeste, que continuando a esburacar o meu corpo denso e rarefeito, e olhos nos olhos, emite uma gargalhada inocente que me evapora.
 
Hoje, foi o princípio dos dias melhores que os anteriores. 
 
FOTO - ANTÓNIO TEDIM
TEXTO - RUI SANTOS ( www.cognitare.blogspot.com )