Não há regras para boas fotos, apenas há boas fotos
(Ansel Adams)

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

UMA FOTO, UMA LEITURA




                                                                       O BOSQUE


É tarde. Faz-se tarde. Sentado nesta cadeira de baloiço de madeira maciça, escura e com os veios profundos, resultado de tantos embalos, de tantos pores-do-sol, de tantos serões, vejo mais um dia passar, vejo mais uma vez a tua cadeira de baloiço parada, imaculada, sem qualquer rasgo, sem qualquer uso, apenas e só preenchida por um vazio de memórias, de intenções, de planos, de saudade. Vejo mais uma vez o Sol seguir para poente, de novo a sua luminância pinta no céu as cores do fim de tarde, deixando que tudo o que me rodeia se perca na escuridão que se levanta pouco a pouco. A cada passo que o Sol se afasta lentamente desta minha vista outrora cansada, a lugubridade toma conta das cores vivas e verdejantes do bosque que me rodeia. Mais uma vez, no horizonte apenas se vislumbra uma pincelada cor de laranja forte e arrojada, rematando o dia, em simultâneo com o início da beleza enigmática da noite.


A brisa noturna chega juntamente com os animais que acordam para o seu dia, os animais noctívagos começam a aproximar-se do meu alpendre, de onde é emanad0 o único ponto de luz deste recanto escondido de tudo e de todos. O bosque inicia uma sonoridade própria, primeiro uma miscelânea de barulhos – de animais, de insetos, de folhagens, até mesmo de coisas que desconheço – e, a pouco e pouco, o ruído começa a afinar-se, a sincronizar-se, transformando o que antes era barulho numa bela melodia... a melodia do início da noite. Retenho-me a apreciar a transformação, aguardando serenamente pela brisa lenta e melodiosa que chegará em poucos instantes. Aqui, neste local que me acolheu como um dos seus, deixei-me absorver pelas suas regras, não tenho relógio, horários, as necessidades vêm ao ritmo que o bosque entende e, assim, sinto-me bem, reconfortado. Quando cheguei a este local, do qual não consigo sequer saber as coordenadas, senti necessidade de seguir esta ordem pré-estabelecida das coisas, permitindo-me entranhar cada vez mais neste habitat, primeiro à descoberta e com cautela e, quando dei conta, já estava dependente do seu compasso, dos seus espaços, dos seus cheiros, dos seus sons, não conseguindo sentir-me vivo se não me sentisse, também eu, uma peça deste puzzle. A brisa chega, com delicadeza e charme, primeiro numa espécie de cumprimento aos presentes e depois, de forma gradual, numa consistência regular e harmoniosa.



Sempre me imaginei a ter estes serões, só não os imaginei sem te ter ao meu lado. Imaginei que a tua cadeira também baloiçasse, também ficasse escura, com rasgos do uso; imaginei que estivéssemos lado a lado neste alpendre a olhar a imensa e profunda escuridão do bosque, apenas com tímidas luzes dos pirilampos; imaginei que bebêssemos um cálice de vinho do Porto para aquecer o corpo desta ligeira brisa que refresca o nosso corpo, acompanhados da nossa grafonola a proliferar uma bela sonata de Chopin interpretada por Artur Rubenstein, as vozes inconfundíveis de Cecília Bartoli ou René Jacobs na interpretação de óperas como La sonnambula de Bellini ou Giulio Cesare de Handel, ou simplesmente deixar-nos levar pela liberdade do pássaro Charlie Parker ou pela rebeldia do Miles Davis e John Coltrane; imaginei-nos a olhar um para o outro e sem falarmos lermos os desejos um do outro; imaginei-nos juntos a amar-nos.



Continuo aqui sentado nesta cadeira de baloiço sem o vinho do Porto para beber para me aquecer desta brisa que me refresca, sem a grafonola para encher o silêncio que imaginava para a enigmática noite, pelo contrário, ouço a sua melodia inconfundível, livre e rebelde todas as vezes como se fosse a primeira vez e, continuo à procura do teu olhar para nos amarmos nos desejos um do outro.



Quero ir deitar-me, mas a cadeira de baloiço não para de embalar-me, a melodia da noite começa a interpretar Lover, Come Back to Me de Billie Holiday, a brisa começa a refrescar-me mais do que o habitual, sinto uma ligeira frescura que resolvo com um gole de vinho do Porto, a tua cadeira pela primeira vez começa a baloiçar lentamente...


FOTO - ANTÓNIO TEDIM
TEXTO - RUI SANTOS