Não há regras para boas fotos, apenas há boas fotos
(Ansel Adams)

terça-feira, 12 de junho de 2012

Uma foto, Uma leitura



A CULPA

Podemos continuar a falar como se nada tivesse acontecido, neste restaurante onde já fomos um só. Continuámos sem querer mencionar que aquilo que nos trazia aqui já não existe e que nós já não estamos aqui, ou melhor, eu estou e tu estás, mas nós como já o fomos um dia já não estamos aqui porque este vinho maduro tinto de castas do Douro já não perdura na minha boca como outrora, nem as velas que antes alumiavam a minha cara conseguem fazer desaparecer esta sombra da culpa.
Podias ao menos fingir que estás a ouvir o que te estou a dizer!

A verdade é que podia, a verdade é que queria escutar o que estás a dizer, mas tenho medo, tenho medo que perguntes o que é que eu estive a fazer até tarde no escritório, e não vá eu ter que te olhar olhos nos olhos, sem chorar, e dizer-te que tudo aquilo que construímos durante vinte anos foi destruído, tudo porque nessa maldita noite não fui capaz de lhe dizer "não", "para", "basta". Acredita que se eu pudesse voltar atrás tê-lo-ia dito de forma veemente para que não restassem dúvidas da minha posição dúbia, ou talvez não fosse capaz, mas a verdade é que querer-lho-ia ter dito…mas não disse.
Os senhores aceitam um pouco mais de vinho?

Arriscava dizer-te que parece que estamos a beber um pouco demais, mas não, já não o sei dizer, já não mereço dizê-lo, sem ser ofensivo, porque não beber um pouco demais, porque é que só me estou a preocupar agora que já é tarde demais. Como isto, muitas outras coisas poderiam ser ditas neste local onde tudo já não é o que era, porque há dias que mudam uma vida, assim como há vidas que mudam o resto dos nossos dias. Por outro lado, é melhor dizer que aceitamos mais vinho, que embora já não tenha o sabor de sempre, podemos sempre contar com o efeito inebriante do álcool, é melhor dizer que queremos que encha os copos bem cheios e que, sempre que os vir a esvaziar, garanta que não chegam ao fim, porque o melhor é bebermos para esquecer, ainda que tu não saibas o quê, vais com certeza querer esquecer aquilo que não mereces saber e que te fizeram. Vamos beber, beber para esquecer que, um dia, numa noite, num momento, num instante, eu fiz o que não poderia ter feito, para esquecer que fui fraco quando deveria ter sido forte, para fingir que fui homem quando na verdade fui uma besta.

Vamos pedir a conta, porque já estou farto do sabor a álcool etílico deste vinho, porque já estou farto destas velas me cobrem a cara de sombra, vamos embora antes que tudo se desmorone na mentira que estamos a viver e fiquemos aqui dentro, presos na verdade, presos na dor, presos no arrependimento. Vamos fugir para bem longe, tão longe quanto possível, onde a distância possa possibilitar-nos voltar atrás e fazer tudo diferente, fazer tudo bem e, aí, bebermos este vinho – aromático, tão encorpado que deixa na boca uma sensação harmoniosa e macia – e deixarmo-nos levar por uma noite de romance.

Ainda estamos nesta pocilga, quero ir embora, quero fugir, o empregado não olha, não percebe nos meus olhos que sofro, em desespero recorro ao prático abdicando do cortês para chamar pelo empregado…simulo uma assinatura em plena atmosfera. Podia esperar e esperar para dizer "desculpe", "faz favor, a conta!", mas o tempo urge, temos que fugir desta comida que já não alimenta um corpo com uma alma tão carregada de culpa, culpa por ter passado a besta e, ainda assim, tu achares que eu sou bestial, mesmo ao fim de vinte anos, mesmo depois de conheceres todos os meus defeitos, ou melhor quase todos, e ainda assim vês em mim a integridade camuflada por esses vernizes modernos que secam em dois minutos e duram e duram e duram, sempre a brilhar, sempre esplendorosos, a esconder uma unha sem cor, sem brilho, sem vida, sem honra.
Ó querido, tu hoje estás com uma cara de enterro!

Não me chames querido, não te preocupes comigo, não sejas boa comigo quando eu fui um sem vergonha contigo, e em vez de dizer "para" fechei os olhos e deixei que a minha cobardia me vencesse nesta derrota que significa a morte do "nós".

O enterro ainda está para vir e eu vou sofrer ao ver-te seres apanhada nesta dor ardente, nesta ferida de um fogo que não se vê.

Foto - António Tedim
Texto - Rui Santos (www.cognitare.blogspot.com)

sábado, 2 de junho de 2012