A VIDA NUM MINUTO
O maço de tabaco Português Suave, cor amarelo torrado, baila nas minhas mãos como um
brinquedo, manejo-o como se tivesse sido sempre o mesmo, aquele primeiro e que
me agarrou a esta ligação umbilical que me compensa, que me conforta, que me
completa. Olho para ele e só agora o respeito, o entendo, só agora percebo que
ele sabe tudo de mim e nunca proferiu uma palavra, quer fosse para discordar,
quer fosse para anuir ao que eu dissesse, ao que eu fizesse ou ao que pensasse.
Esta cumplicidade de longa data faz com que a nossa ligação perdure no tempo,
desde a minha juventude até aos dias de hoje, onde me encontro, tranquilamente,
sentado num dos muitos bancos do jardim da praça a gozar a paz da agitação das
crianças que brincam nos baloiços e escorregas.
Tiro um cigarro. Olho para ele e
admiro-o como se fosse a primeira vez, como se fosse aquele primeiro cigarro
que roubei às escondidas, aprecio a brancura destas novas mortalhas que
cilindricamente envolvem o tabaco prensado, sôfrego e claustrofóbico. Brinco
com ele entre os dedos durante uns segundos, coloco-o delicadamente na boca e
acendo-o com um isqueiro Bic... a sua
libertação e o seu fim começaram. Dou uma passa forte, deixando a ponta reluzir,
numa luz revigorante e alaranjada, perdurando assim uns bons segundos. Enquanto
eu inspiro, saboreando a inalação do fumo, o cigarro vive avidamente a sua alforria.
Em uníssono, eu paro e a luz abranda, eu expulso o fumo que resta na minha boca
e, o cigarro liberta um fumo quase branco, dançando na atmosfera aos
ziguezagues, como se estivesse a festejar o resgate.
Deixo o cigarro arder sozinho numa
liberdade juvenil e irreverente nas minhas mãos, de tempos a tempos resiste a
cada investida minha, a cada passa que o consome, que lhe encurta a mortalha
sem conseguir nada de mim. Outrora levava consigo os meus pensamentos, os meus
sonhos, as minhas ambições... agora leva apenas a minha companhia, neste parque
onde o sol espreita por entre as ramagens das árvores altas e seculares, protegendo-nos
do calor abafado. Continuamos no mesmo registo de sempre, continuamos sem
falar, continuamos a comunicar através do que não se diz, do que não se fala,
apenas comunicamos do que sentimos, sabendo que nos entendemos, que nos escutamos
no silêncio, na mudez que enche este banco de jardim, de tábuas de madeira pintadas
a verde musgo, gastas, com marcas feitas com chaves ou canivetes, corações com
nomes que não se percebem (ou não se perceberam). Continuamos a não fazer nada
que não seja sermos a companhia um do outro, nesta tarde que já vai longa,
neste dia que nos foge.
A mortalha está a chegar ao filtro, o
cigarro viveu fugazmente estes minutos, libertou-se, viveu na minha companhia
e, agora, parte, resignado e calmo. Não o apago, despedimo-nos lentamente, no arder
entre os meus dedos amarelados, na ponta que diminui a cada passo, no vigor do
início que perde a sua luz incandescente.
Sentado neste jardim, seguro-o cuidadosamente
nos dedos da mão direita, paulatinamente deixamos interromper esta nossa
cumplicidade e, juntos, observamos o pôr-do-sol que, sem que tenhamos dado
conta, já vai longe, nesta vida que tem um minuto.
Foto - António Tedim
Texto - Rui Santos (www.cognitare.blogspot.com)
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