ANCORADOS NA HISTÓRIA
Acabei de almoçar no Restaurante do Museu do Vinho do Porto e preparo-me para digerir as delícias gastronómicas numa caminhada pelo Porto viajando pelo sentimento invicto que transpira em cada poro que separa as pedras das casas que desenham estes caminhos. Embora repita este trajeto variadíssimas vezes, ao descer estas ruas estreitas dos caminhos do Porto Romântico, que, em harmonia, serpenteiam os cantos da história desta cidade, até desaguarem nas margens do majestoso Rio Douro, vou tentar gravar na memória para nunca esquecer a beleza desta cidade, aqui, nestes jardins que rodeiam o Museu e nos envolvem de modo a que só tenhamos olhos para ver o Rio Douro a embater calmamente nos muros que protegem as ribeiras.
A beleza destas ruelas está na forma como imaginámos o passado, com uns varandins onde quase não cabe uma pessoa, relembro os livros de Júlio Dinis que tão bem descrevem esta zona esquecida da maioria dos portuenses. Com o tempo e o desgaste e esquecimento da História, estas relíquias, que são as marcas do Porto de outros tempos, já não estão como eram retratadas pelo escritor, estão velhas e mal conservadas, mas ainda assim, se fechar os olhos, sinto o cheiro dos vasos cheios de flores nos parapeitos, as janelas de madeira maciça, em forma de portadas altas, abertas para o sol entrar a ouvir-se a vida e agitação dentro das casas. Sinto-me bem, respiro este ar puro, passeio nestas vielas vazias e imagino-as com mais vida, imagino-as com a azáfama do movimento de antigamente esquecendo o contraste deste deserto onde deambulo nostalgicamente.
Percorro a calçada num passo cada vez mais rápido, a cada casa, levo-a comigo no imaginário, idealizo uma história para cada uma delas, fantasio que outrora ali se fez uma família, ainda que agora padeça apenas e só de uma memória e tenho a certeza que cada pessoa que encontro gostaria de a contar, não a que criei, mas a verdadeira, e talvez, quem sabe, sejam similares. A passada mantém-se firme e a imaginação fervilha em histórias reais no meu quimérico, até que chego à alfândega. Hesito. Subo em direção ao mercado Ferreira Borges, visito o Palácio da Bolsa, continuo? Decido. Já não vou a um sítio há muito tempo. Sigo o andamento pelo passeio do lado direito, as pedras grandes, gastas e tortas dificultam-me o andar, têm um aspeto escuro, a enquadrar-se bem no negrume desta zona humilde em contraste com as cores e luzes dos bares que destoam e confundem a História.
Entro no túnel, ouço o barulho ensurdecedor dos carros que invariavelmente apitam. Ignoro na obstinação que tenho em chegar ao meu destino...faltam poucos metros.
A saída do túnel é o fim da minha viagem. Respiro lentamente para recuperar e sentir o cheiro do local. Procuro um local e sento-me a olhar para a frente onde enfrento o painel de azulejos do Mestre Júlio Resende, a “Ribeira Negra”. O poeta Eugénio de Andrade escreveu que esta obra era um "magnificente historial da miséria e da grandeza da população ribeirinha do Porto".
Após horas a apreciar algo tão fascinante, com aquele mural a absorver todo o meu raio de visão, não consigo deixar de pensar que a beleza desta parte da cidade se deve a todas aquelas pessoas ali retratadas, ora na ribeira a lavar roupa, ora com cestos na cabeça, ora a ajudar os pescadores. Todas elas estão perpetuadas e ancoradas na História do Porto.
Foto - António Tedim
Texto - Rui Santos (www.cognitare.blogspot.com)
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