Não há regras para boas fotos, apenas há boas fotos
(Ansel Adams)

sábado, 27 de outubro de 2012

UMA FOTO, UMA LEITURA




Travessia
Parece não ter fim esta ponte desmedida e austera, envolta neste ferro pesado e rígido, rasgada pelos raios de sol, que teimam em passear pela cidade invicta ignorando o negrume que tanto a embeleza. Caminho nela desde sempre, vou avançando, passo a passo, já a percorri a grande velocidade, em jovem percorri-a a todo o vapor, com medo que o amanhã me fugisse, vivi um sem número de histórias que marcaram a minha existência. Com o passar dos anos, a destreza com que dava cada passo, com que arriscava cada avanço foi perdendo o seu fulgor, comecei a acusar uma carga que me pesava as costas. Já fui jovem e agora estou menos jovem, já tive o cabelo forte e negro e agora tenho esta brancura que me cobre o couro cabeludo mostrando bem que o tempo passou, já tive um corpo jovem e hirto e, agora, mesmo não conseguindo erguer as costas, continuo a caminhar ao sabor do vento.
Prossigo a minha caminhada com o mesmo empenho do início desta jornada, entrei nesta ponte, de chão irregular que teima em fintar os meus pés, com o objectivo de chegar ao outro extremo, independentemente do que que possa acontecer, vou consegui-lo, com maior ou menor dificuldade, vou marchar até que os pés, que já pouco se levantam, não consigam dar o próximo passo… Foi a olhar para a frente que cheguei até aqui, desde o começo, sempre com o olhar colado na outra extremidade, sem pressa de lá chegar, apenas sabia que queria chegar lá, saboreei cada momento com o deleite que me merecia. Desde a infância até agora fui deambulando com uma incessante procura pela felicidade – caí, levantei-me, voltei a cair e voltei a levantar-me, vezes sem conta, dancei, namorei, embebedei-me nos bailes das cooperativa, trabalhei, casei, tive filhos, netos, bisnetos, entreguei-me a esta passagem sem medo do amanhã, sem medo desta dádiva que é jornadear em cima desta ponte, umas vezes pérfida, outras vezes presenteando-nos a abertura dos ferros, dando-nos o azul celeste do céu, a luz, a esperança, permitindo que essa luminância nos encha a alma e nos permita dar mais um passo a caminho da extremidade que se vai aproximando.
Hoje, ao chegar à extremidade, mantenho o sorriso de a estar a caminhar, ainda que, na verdade, o cansaço se tenha apoderado de mim a cada passada e, com isso, a força das minhas pernas já não seja a mesma de outrora. Olhando para a reta final, ainda sinto que consigo, sozinho, caminhar devagar, arrastando os pés de costas curvadas e pesadas carregando comigo esta mala – a minha mala cheia de histórias, cheia de lembranças, cheia de alegria – para quando chegar lá ao fundo, na incontornável extremidade, onde a ponte que afinal era de ferro se vislumbra em madeira branca e maciça, poder esticar-me com dignidade, olhar de novo em frente e, de costas bem estendidas, a poder abrir e com os braços fortes e musculados de outros tempos, deixar que tudo o que a encha se espalhe no ar e caia lentamente no coração de cada um dos que me acompanharam nesta jornada, porque tudo o resto trago comigo na minha alma.
 
Foto - António Tedim
Texto - Rui Santos (www.cognitare.blogspot.com)
 

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