Hoje e Sempre, O Passado
As águas paradas desta lagoa que ladeiam as frescas terras húmidas polvilhadas com um musgo verde vivo, iniciam o caminho para o bosque alumiado pela luz forte do Sol. Nessa águas calmas, reluz o reflexo da imagem dos caminhos da vida que lhes penetra e que as alimenta. A paisagem surge-nos imbuída de troncos fortes, encorpados e velhos que contornam as águas cintilantes como muralhas protetoras. Em cada tronco surgem ramos de vários tamanhos, neles brotam ramalhetes, numa transformação constante, onde, à medida que o tempo passa, os ramos se tornam também eles troncos e os ramalhetes dão origem a ramos, tornando-se imperceptível quando começou um e acabou outro.
Hoje, há um ramo forte e vigoroso que me encara no espelho aguado que me rodeia, em mim brotou um ramalhete que cresce a cada dia, um ramalhete que fortalece a sua fragilidade numa dependência viciante. Hoje, sou um ramo quando olho nos teus olhos cansados, nessa dança contra o sono, pestanejando lentamente as pálpebras até te deixares adormecer. Nesse momento, nesse ínfimo hiato de tempo, quando te aconchego nos meus braços e te olho, como só um ramo consegue olhar, lembrando-me que outrora, também eu fui um ramalhete que lutou contra o sono, que se deixou vencer, adormecendo na segurança do no colo do seu ramo. É nessa nostalgia que, entre o limbo do sono e da realidade, num ímpeto, numa incapacidade de raciocinar, levado pela dor ardente da saudade, dou um salto desenfreado para aquelas águas paradas no tempo, agitando-as, fazendo-as sentir o batimento incontrolável do meu coração, provocando-lhes um movimento ondular que revolta a lagoa, que a reaviva, que transborda as fronteiras da muralha, permitindo-me viajar submerso naquele líquido frígido, cada vez mais gélido à medida que chego mais perto das profundezas da saudade, lutando contra o tempo na procura do tronco que me brotou e que se encontra debaixo daquela linha. Nado, incessantemente, à procura do ontem, à procura do abraço e, tal como te faço a ti, à procura do meu cafuné para adormecer na calma dos anjos, na luta contra o sono, nos braços de quem amo.
O regresso à superfície foi lento e longo, mas tranquilo. Nadei até ao meu tronco, comecei a subi-lo com o corpo a escorrer água, molhando-o com a mesma suavidade com que me ia secando. Chegado ao meu ramo, olhei em volta, observei a muralha que nos protegia, abracei-o com força e, numa simbiose perfeita, senti o meu corpo a ser absorvido numa metamorfose natural, calma e tranquilizante. Era de novo um ramo, um ramo de outro ramo, de outros ramos, um ramo de um tronco que outrora foi ramo. Voltaste a brotar e voltei a ver-te crescer. Um pequeno ramalhete fino, frágil e verde que, a cada dia, se vai transformando. Olho-te com orgulho, vejo-te a crescer, a ganhar estrutura, a ganhar força, a caminhar pela primeira vez sozinha. Na tranquilidade do ar que envolve a lagoa, começo a lutar contra o sono, foi um dia intenso. Agora quero apenas olhar para ti, ver-te crescer e sentir o cafuné húmido das águas da lagoa.
Foto - António Tedim
Texto - Rui Santos (www.cognitare.blogspot.com)